quinta-feira, 22 de março de 2012

O que nos torna plenamente humanos?

O ser humano é um animal. Um animal diferente. Um animal que tenta desobedecer às regras naturais do mundo. Desde os primórdios da humanidade que o Homem se destacou evolutivamente em relação ao resto dos animais. As abelhas de hoje não são muito diferentes das abelhas de há quinhentos anos, ambas seguem a sua lei da sobrevivência. Mas o que faz o Homem de hoje ser incrivelmente diferente ao Homem de há quinhentos anos (ao contrário da abelha) é o seu desejo de conseguir algo mais que a simples sobrevivência. O Homem quis evoluir-se, quis descobrir o mundo em que vive, tentou deixar que fosse só a natureza a evoluir o mundo, e tentou evolui-lo ele mesmo. Aí o ser humano tentou-se afastar ao máximo dos seus instintos naturais e começou a criar cultura. Para entendermos bem a questão do que nos torna plenamente humanos temos que primeiro perceber o que é que nos distingue do resto dos animais. Em que processo é que deixamos de ser animais e passámos a ser humanos.


Apesar do ser humano ter criado cultura não conseguiu nunca tirar a natureza do seu ser. É-nos natural comer, portanto quando estamos realmente com fome não pensamos noutra coisa sem ser em comer. Quando estamos apaixonados por mais que a nossa razão nos impeça, o instinto prevalece. Assim podemos dizer que os nossos comportamentos quando são naturais são espontâneos, ou seja, não temos controlo voluntário sobre eles. Nós, os animais, não conseguimos controlar a nossa natureza, a nossa espontaneidade. Mas os Homens não quiseram fazer da natureza a sua vida e quiseram criar a sua própria realidade. E essa realidade que o Homem criou é todo o que nós hoje vemos como não-natureza. Então foi necessário agir, agir com reflexão sobre a acção, ao contrário do resto dos animais. Claro que mesmo hoje nem sempre os Homens agem com consciência da sua acção, por exemplo no que toca à violência, agem por instinto. Com este início da nossa reflexão e pensamento começámos a criar sociedades, com o objectivo de progressão e evolução do mundo. Estas sociedades eram diferentes dos nómadas ou das sociedades que o resto dos animais formava. Eram sociedades não-naturais, eram um reflexo da não-espontaneidade, eram sociedades baseadas no pensamento da altura, na cultura vigente. Tentámos por via do pensamento construir a melhor realidade possível de modo a evoluir o mundo à nossa maneira.


Muitas pessoas diriam que o que nos torna plenamente humanos é termos o dote(inseparável da nossa essência) de construir cultura e o resto do reino animal não. Mas se olharmos à volta do mundo vemos diferentes culturas, em guerra, donos da verdade universal. A cultura provoca um etnocentrismo muito pouco saudável. As grandes desigualdades no mundo vêm daí. Não vemos os animais em guerra, porque eles só se atacam para satisfazer as suas necessidades fisiológicas, mas os humanos, para além de matarem para satisfazerem as suas necessidades fisiológicas, matam para satisfazer as suas necessidades culturais. A cultura está assente em valores que se alteram consoante a sociedade e o tempo e é algo que todos os humanos têm. Na pergunta “O que nos torna plenamente humanos?” responder cultura seria desadequado porque todos temos uma mas é sempre diferente, para isso seria mais adequado responder a fome, por exemplo, que todos temos mas é sempre a mesma. Dizer uma coisa que todos temos, que nos caracteriza de diferentes formas não é dizer o que é ser um humano. Mas, então, o que é que nos torna plenamente humanos? O que é que nos une enquanto humanidade?


Nós temos a nossa acção dividida em dois tipos, a natural e a humana (é engraçado como se divide a natureza do Homem como se este tivesse criado a sua própria natureza). A acção natural é aquela que os animais detêm na sua totalidade e que nós tentamos ao longo dos tempos diminui-la. É a acção espontânea, a acção que obedece às regras naturais interiorizadas na nossa essência. A acção humana é uma acção baseada nas escolhas que não são sacrificadas pelo nosso espírito racional. Estas escolhas adequam as nossas necessidades ilimitadas aos recursos escassos (princípio base da economia). Então esta acção humana não é um olhar sobre a sobrevivência de hoje, como a natural, é um olhar sobre a sobrevivência do amanhã. Pensarmos não de modo a sobreviver mas em garantir uma boa vida amanhã. Esta sempre foi a grande preocupação do ser humano, viver bem, pois viver bem é felicidade e felicidade é a finalidade vital.


O existencialismo olhou para os humanos como seres poderosíssimos. Donos de si próprios, seres livres. A minha opinião humanística reside muito aí, os humanos são humanos porque agiram contrariamente às leis da natureza e isso implica liberdade. Nada neste mundo é mais forte que a natureza, porque o mundo é natureza, e não há nada no mundo mais forte que o mundo, tal como não há nada em nós mais forte que nós mesmos. Logo se nós conseguimos aplicar a nossa liberdade à natureza, conseguimos aplicá-la em todo o lado. Claro que é possível argumentar que o humano é dotado de todo o tipo de vícios fisiológicos e por isso não é livre. Ou que nasceu no seio de um regime totalitário e por isso não é livre. Mas ele é livre porque pode escolher. A liberdade são escolhas no qual sacrificamos uma delas e prol da outra (custo de oportunidade). O animal rege-se às leis naturais ao contrário do ser humano que pode fazer escolhas. Mesmo que a sua realidade não lhe dê liberdade, pode escolher morrer, matar-se, e isso é ser livre. Os animais podem escolher morrer mas não é uma escolha como nós a entendemos pois eles não têm a nossa consciência de acção.


A liberdade tem duas conotações. A conotação positiva está na possibilidade de escolhermos. A conotação negativa reside na ideia que eu estou a agir livremente porque ninguém me impede. O que, na minha opinião, não é necessariamente negativo. Só é negativo se eu estiver a agir mal (interferir na liberdade do outro) e ninguém me impedir. Mas se eu estiver a agir bem e ninguém me impedir é um passo para o progresso. É uma ideia muito apoiada na maioria das sociedades, a que o humano não é responsável o suficiente para agir bem em liberdade, sem que alguém o controle.


O animal não age porque não tem consciência da sua acção, não é livre, não pode escolher. Mas sendo nós os seres livres e dotados de um poder interior incrível que a natureza nos ofereceu e que nós desenvolvemos, devemos assumir o nosso papel e a nossa maior responsabilidade. Tal como a liberdade existe até interferirmos a liberdade dos outros, a nossa liberdade existe até interferirmos a liberdade do resto do reino animal, que não tem culpa das nossas acções irresponsáveis. Não é necessário interferir na liberdade dos outros para mostrarmos a nossa própria liberdade. Somos um ser fascinante mas que se convenceu do facto de ser fascinante achando-se assim o dono do mundo. Não devemos esquecer que nenhum animal é irrelevante no mundo. Uns têm mais liberdade, outros apenas sobrevivem. O que nos torna plenamente humanos é sermos livres, agindo com consciência das escolhas que fizemos. O que nos faz ser humanos é não agirmos muitas vezes naturalmente, mas sim humanamente, baseando-nos nos nossos próprios valores e não nos universais da natureza. Porque nós criamo-nos a nós próprios. Nós existimos para melhorar a nossa existência. Tal como Nietzsche referia que não valeria a pena ter filhos se não fosse para fazer uma versão melhorada de nós mesmos (provavelmente para chegar ao super-Homem). Na minha opinião não vale a pena continuarmos a ser humanos se não estamos a criar uma versão melhorada do mundo.

Um comentário:

  1. Texto longo, difícil, mas poderoso.

    Já muitos pensadores, normalmente antropólogos, pensaram sobre o que pode definir o homem: o bipedismo, o cérebro e a inteligência, o conctacto com a transcendência, a linguagem, a organização social, etc..

    A ideia da liberdade é muito tentadora. Sobretudo definindo-a como a hipótese de fazer escolhas. A esta liberdade, associaste algo muito interessante: o desejo dos homens de serem mais, de "melhorarem a sua existência".

    Concordo contigo, mas o problema é que a maioria dos homens não são assim. Não prezam a liberdade. Nem querem mais. Devemos então deduzir que não são dignos de humanidade?

    O Nietzsche resolve o problema falando do homem que apenas existe, arrastando a sua pequenez até ao limite do "último homem". Nascendo depois o "ubermensch" (cuja tradução de super-homem é horrível: os ingleses traduziram melhor por "overman", o "homem que está acima"; O filósofo francês Luc Ferry fala do "Homem-deus" - o que seria o suficiente para pôr os nervos do pobre Nietzsche em franja), que será o homem de que tu falas. O homem verdadeiramente livre que quer mais.

    Tentando concluir, acho que falas de um humano grandioso que não é necessariamente característico do humano que existe, mas antes do melhor que podemos encontrar na humanidade com a qual nos vemos confrontados.

    Abraço.

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